Qual o homem mais inteligente da Antiguidade? O tipo de Inteligência de Jesus de Nazaré

“Jesus, porém, foi para o Monte das Oliveiras. Pela manhã cedo voltou para o templo, e todo o povo vinha ter com ele; e ele, assentando-se, os ensinava. Então os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério; e, pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada no próprio ato de adultério. Ora, na lei, Moisés nos ordena que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes?”
— João 8:1-5.

 

Neste episódio, Jesus é confrontado com uma situação em que seus opositores buscam colocá-lo à prova, tentando forçá-lo a escolher entre a estrita obediência à lei mosaica e a sua pregação de misericórdia e perdão. A multidão aguarda sua resposta, e Ele surpreende a todos com sua atitude. Primeiro, inclina-se e escreve no chão com o dedo, um gesto silencioso e enigmático que interrompe a tensão do momento.

Ao se levantar, Jesus diz a frase que se tornaria um dos marcos de seu ministério: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a atirar uma pedra nela” (João 8:7). Ele redireciona o julgamento dos presentes para suas próprias consciências, deixando implícita uma lição sobre a hipocrisia e a necessidade de refletir sobre os próprios erros antes de condenar os outros.

Aos poucos, os acusadores vão se dispersando, começando pelos mais velhos, até que apenas Jesus e a mulher permanecem, sós no centro de uma cena que transborda compaixão e profundidade moral. Então, em um gesto de infinita empatia, Ele se dirige a ela e pergunta: “Mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou?” Ao ouvir dela que ninguém a condenou, Jesus responde com palavras que ecoam pela história: “Nem eu te condeno; vai-te e não peques mais” (João 8:10-11).

Essa cena é amplamente conhecida e celebrada por boa parte da humanidade, mas o que ela nos revela de tão especial? Qual é o verdadeiro significado desse ato? E mais: o que era ser inteligente no tempo de Jesus? Para entender isso, precisamos olhar para os conceitos de inteligência que surgiram antes Dele.

A Inteligência Reflexiva de Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.)

Para Sócrates, a inteligência residia no ato de questionar e reconhecer as próprias limitações, como demonstra sua famosa frase “Sei que nada sei”. Este princípio sintetiza sua crença de que a verdadeira sabedoria começa com o reconhecimento da ignorância. Karl Jaspers (1953), filósofo existencialista, considerou Sócrates uma figura central na “consciência axial,” uma transformação do pensamento ocidental onde a inteligência passou a unir-se à busca por sabedoria ética e autoconhecimento.

Um conceito fundamental no pensamento socrático é o da anamnese, ou reminiscência, descrito no diálogo Mênon. Segundo ele, o conhecimento verdadeiro já está presente na alma humana, mas precisa ser “lembrado” ou recuperado através da razão. Esse processo sugere que a inteligência é um ato de recordação e uma conexão com a verdade pré-existente, e não a simples aquisição de novas informações.

A abordagem investigativa de Sócrates, conhecida como método socrático, foi revolucionária. Platão descreve esse método em seus diálogos, mostrando como Sócrates guiava seus interlocutores em um processo de perguntas e respostas que revelava as contradições ocultas em suas crenças. Alfred North Whitehead (1929) reconhece Sócrates como pioneiro de uma tradição filosófica baseada na dúvida enquanto o “motor” da própria inteligência.

A filosofia socrática não buscava respostas prontas, mas sim uma inteligência baseada na autocrítica e na busca contínua pela verdade. Sócrates expressa esse ideal em Apologia de Sócrates: “Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida” (Platão, Apologia, 38a). O filósofo Pierre Hadot (1995), em O que é a Filosofia Antiga?, descreve Sócrates como o “sábio filosófico,” alguém cuja inteligência se manifesta na prática constante de autorreflexão e no compromisso ético, características que mantêm seu valor atemporal.

 

A Inteligência como Busca pelo Mundo Ideal em Platão (428 a.C. – 348 a.C.)

Platão, um dos discípulos mais célebres de Sócrates, desenvolveu e expandiu os princípios de seu mestre, mas introduziu uma nova abordagem metafísica que reformulou a ideia de inteligência. Para Platão, a verdadeira inteligência não se limitava à reflexão crítica, mas era a capacidade de transcender o mundo sensível em direção ao Mundo das Ideias, uma realidade eterna e imutável onde residiriam os ideais absolutos de verdade, justiça e beleza. Platão acreditava que tudo o que conhecemos no mundo físico é apenas uma sombra ou reflexo imperfeito desse mundo ideal, acessível apenas por meio da razão.

No Mito da Caverna, presente em A República, Platão utiliza uma poderosa alegoria para representar o papel da inteligência na busca pela verdade. Na caverna, prisioneiros vivem acorrentados, enxergando apenas sombras projetadas na parede, acreditando que essas sombras constituem a realidade. Ao descrever o processo de libertação de um prisioneiro que sai dessa caverna e se depara com o mundo exterior — a verdadeira fonte das sombras — Platão ilustra a inteligência como a capacidade de transcender as aparências e enxergar a verdade além das ilusões do mundo sensível. Segundo ele, essa jornada representa a ascensão intelectual que conduz a alma ao conhecimento verdadeiro, que está no mundo ideal.

Estudiosos das obras de Platão como Hadot, (1995), destacaram que Platão via a filosofia como uma “preparação para a morte”, na medida em que se trata de um processo de desprendimento gradual do mundo material em direção ao conhecimento imutável do mundo ideal. Hadot observa que, para Platão, a inteligência implica um exercício constante de superação das aparências, buscando aquilo que é eterno e absoluto.

Em suma, Platão propôs que a inteligência humana era a habilidade de “elevar o espírito” além das limitações do mundo material e alcançar uma conexão com o mundo ideal. Este conceito, que valoriza a razão e a contemplação de ideias eternas, fundamentou uma tradição filosófica que concebe a inteligência como o esforço contínuo de buscar o conhecimento verdadeiro e absoluto, algo que, para Platão, transcende o efêmero e se conecta ao eterno.

 

 

A Inteligência Prática e a Virtude em Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.)

Aristóteles, discípulo de Platão, seguiu a tradição de investigação filosófica de seus predecessores, mas trouxe uma perspectiva inovadora ao explorar a inteligência de forma prática e aplicável ao cotidiano. Diferente de Platão, que via a inteligência como uma busca pelos ideais eternos no Mundo das Ideias, Aristóteles propôs que a verdadeira inteligência, ou phronesis (sabedoria prática), residia na capacidade de agir de maneira virtuosa em situações concretas e na busca de uma vida equilibrada e feliz.

Na obra Ética a Nicômaco, Aristóteles introduz o conceito de phronesis, definindo-a como uma inteligência prática que orienta o ser humano a agir com sabedoria e moralidade no dia a dia. Para ele, a inteligência não é um fim em si, mas um meio pelo qual o indivíduo pode atingir a eudaimonia, ou “bem-estar” e felicidade. Aristóteles acreditava que a inteligência, quando usada de forma prática, guiava o indivíduo a tomar decisões equilibradas, com a aplicação do que chamou de “justo meio” — um caminho de moderação entre os extremos do excesso e da deficiência, e que constituía a base para uma vida virtuosa.

O filósofo e estudioso contemporâneo Jonathan Lear (1988) ressalta em Aristotle: The Desire to Understand que, para Aristóteles, a inteligência era inseparável da ética e do caráter, pois a sabedoria prática dependia da disposição para buscar o bem tanto para si quanto para a comunidade. Lear aponta que a filosofia de Aristóteles propõe uma inteligência ética que considera o bem-estar coletivo, enfatizando que a virtude pessoal contribui para a harmonia social.

Aristóteles também diferenciava a phronesis de outros tipos de conhecimento, como a episteme (conhecimento científico) e a techne (habilidade técnica). Para ele, a phronesis era singular por envolver não apenas o raciocínio, mas também a experiência e a sensibilidade moral que permitem ao indivíduo agir de maneira apropriada em cada situação. Conforme observa Pierre Aubenque, em A Prudência em Aristóteles (1963), Aristóteles vê a phronesis como a “virtude da virtude,” porque ela sustenta e orienta todas as outras virtudes na prática da vida.

Aristóteles acreditava que essa forma prática de inteligência era indispensável para o desenvolvimento moral do ser humano, uma vez que se manifestava em todas as escolhas e ações diárias. Ao contrário de Platão, que associava a inteligência ao mundo metafísico das ideias, Aristóteles defendia que a verdadeira inteligência se revelava na capacidade de viver em harmonia com a realidade concreta, aplicando os princípios da virtude e do justo meio em todas as esferas da vida.

Com essa perspectiva, Aristóteles propôs que a inteligência humana é mais do que um simples acúmulo de conhecimento; é uma habilidade prática que orienta as ações do indivíduo em direção a uma vida equilibrada e virtuosa, influenciando a filosofia ocidental ao longo dos séculos como uma referência para a ética aplicada.

 

A Inteligência do Amor e da Empatia em Jesus de Nazaré

Jesus de Nazaré propôs uma visão de inteligência que transcendia o raciocínio lógico e a busca pelo conhecimento técnico ao introduzir o amor e a empatia como elementos centrais da verdadeira sabedoria. Em sua perspectiva, a inteligência não se resumia ao entendimento intelectual, mas se manifestava no poder transformador da compaixão e na capacidade de compreender o outro, independentemente de seus erros ou falhas. Essa abordagem era revolucionária para sua época, pois inseria a empatia e o perdão como fundamentos da inteligência, um conceito que marcaria profundamente a ética e a filosofia ocidentais.

Uma das passagens mais emblemáticas que ilustra essa inteligência empática de Jesus é o episódio em que Ele ensina o mandamento de “amar aos inimigos.” Em Mateus 5:44-45, Jesus afirma: “Amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus.” Esse ensinamento desafiava radicalmente a visão convencional de justiça da época, que sustentava o “olho por olho, dente por dente” (Êxodo 21:24). Ao propor o amor pelos inimigos, Jesus introduz uma forma de inteligência emocional que valoriza a compreensão e o acolhimento das diferenças, ensinando que a verdadeira sabedoria se manifesta na capacidade de ver a humanidade compartilhada entre todos.

Em Mateus 22:37-40, ao ser questionado sobre o maior mandamento, Jesus responde: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Aqui, Jesus reúne a inteligência espiritual e emocional, ressaltando que o amor a Deus e ao próximo é a base da sabedoria verdadeira. Para Ele, a inteligência se mede pelo quanto alguém é capaz de amar e agir em benefício do outro, uma visão profundamente inclusiva e relacional, que busca construir uma sociedade mais justa e compassiva.

Essa forma de inteligência se mostrou extremamente poderosa e revolucionária, pois ia contra as práticas comuns de julgamento e condenação. Enquanto a sociedade da época baseava a moralidade na observância estrita da lei, Jesus propôs uma ética centrada na compreensão e na conexão humana, abrindo espaço para que o perdão e o autoconhecimento fossem instrumentos de transformação. Ele demonstrava que a verdadeira sabedoria não era meramente a obediência cega à lei, mas a capacidade de ver o outro com compaixão e de promover uma harmonia que ultrapassava a lógica.

A inteligência de Jesus, portanto, redefinia o conceito tradicional de sabedoria ao integrar a empatia e o amor, valores que desafiam o individualismo e o julgamento, e que permanecem como uma força transformadora para a humanidade. Ao propor essa visão de inteligência emocional e espiritual, Ele estabelece uma ética que valoriza o autoconhecimento e o cuidado com o próximo, destacando que o maior ato de sabedoria é promover o bem-estar coletivo e a harmonia social.

 

Conclusão

Ao longo da Antiguidade, a inteligência foi entendida como uma habilidade essencial para o autoconhecimento, a virtude e a busca pela verdade — elementos que pensadores como Sócrates, Platão e Aristóteles buscaram articular de maneiras distintas. Sócrates enfatizou a reflexão crítica e a dúvida construtiva; Platão, a busca por ideais eternos no Mundo das Ideias; e Aristóteles, a aplicação prática da sabedoria para uma vida equilibrada. Cada um desses pensadores contribuiu para uma visão de inteligência que ia além do acúmulo de conhecimento, estabelecendo um ideal ético e moral enraizado na razão e na experiência.

Jesus de Nazaré, no entanto, trouxe um novo paradigma. Sua proposta de inteligência foi revolucionária precisamente porque integrou o amor e a empatia como partes centrais da sabedoria, sugerindo que a verdadeira inteligência está na capacidade de ver a humanidade em todos e de agir com compaixão. Em ensinamentos como “Amai os vossos inimigos” e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo,” Jesus introduziu uma visão da inteligência que desafiava as estruturas de julgamento e condenação de sua época, propondo uma ética fundamentada no perdão e na conexão humana.

Portanto, essa inteligência compassiva e transformadora apresentada por Jesus elevou a inteligência ao nível da empatia e da harmonia social. Jesus não apenas expandiu a compreensão da sabedoria dos antigos, mas também redefiniu o propósito da inteligência: não só entender, mas também curar e conectar. Em última análise, o tipo de inteligência de Jesus combinava autoconhecimento, amor e empatia, oferecendo um modelo de sabedoria que ainda hoje inspira uma compreensão mais profunda e humanizada da vida em sociedade.

 

Subsídios teóricos:

Aristóteles. Ética a Nicômaco. Trad. W. D. Ross, Oxford: Oxford University Press, 1999.

Aubenque, P. A Prudência em Aristóteles. Paris: Presses Universitaires de France, 1963.

Hadot, P. O que é a Filosofia Antiga? Trad. David L. Teixeira, São Paulo: Editora Loyola, 1995.

Jaspers, K. The Origin and Goal of History. New Haven: Yale University Press, 1953.

Platão. A República. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 2003.

Vlastos, G. Socrates: Ironist and Moral Philosopher. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

Whitehead, A.N. Adventures of Ideas. Nova York: Free Press, 1929.

 


 

Este texto que você acabou de ler é um fragmento de um trabalho em andamento, A História da Inteligência Humana: De Sócrates a Era do ChatGPT, uma obra que explora a fascinante trajetória da inteligência ao longo dos séculos. Nele, revisitamos os passos dos pensadores mais influentes da Antiguidade e investigamos como a inteligência, desde Sócrates até os nossos dias, evoluiu e se reinventou, adaptando-se aos novos desafios e ampliando nosso entendimento do que realmente significa “ser inteligente”.

Cada página desse projeto é um convite para mergulhar em debates profundos, onde as reflexões sobre a sabedoria clássica e as transformações contemporâneas caminham lado a lado. E você, o que achou dessas ideias? Será que hoje ainda praticamos essa inteligência compassiva e ética? E mais: o que você considera uma inteligência verdadeiramente humana?

Queremos ouvir sua opinião! Deixe um comentário e compartilhe suas impressões. Que tal convidar outras pessoas para refletirem junto com a gente? Afinal, o conhecimento só cresce quando é compartilhado.

 

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2 respostas

  1. Conectar as ideias da Antiguidade com as palavras de Jesus traz uma perspectiva que transcende o tempo e revela a universalidade desses pensamentos, bem como inspira a reflexão sobre a sabedoria humana e espiritual. Grande trabalho!

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Meu nome é Luiz Mário F. Costa, e tenho a satisfação de compartilhar minha experiência e conhecimento com você. Sou historiador, com Mestrado e Doutorado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e um Pós-Doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). Além disso, desenvolvi pesquisas na Universidade de Lisboa (UL) e na Universidade Católica Portuguesa (UCP). Minha área de investigação concentra-se na fascinante História da Escrita, onde tenho contribuído com dezenas de artigos científicos e livros de referência.

Soma-se a minha formação acadêmica, uma sólida base em Psicanálise Clínica pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica (IBPC), o que me permite enriquecer minha abordagem e compreensão das nuances do processo de escrita. Como fundador da Coach em Escrita em 2019, tenho o prazer de liderar a mais completa Empresa de Serviços Redacionais.

Minha trajetória como pesquisador e escritor me proporcionou uma ampla visão sobre as demandas textuais acadêmicas e profissionais. Ao longo dos anos, desenvolvi uma metodologia exclusiva e eficiente para auxiliar os indivíduos em sua jornada de escrita. Com a Coach em Escrita, proporciono um suporte personalizado e orientação estratégica para cada demanda textual, desde concursos públicos e vestibulares até artigos científicos, relatórios, teses e livros.

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